Hamlet
Texto original Hamlet, de William Shakespeare
Tradução Fernando Villas-Boas
Encenação Luís Moreira
Assistência de encenação Ana Baptista e Leonor Buescu
Apoio ao movimento Joana Chandelier
Interpretação Alice Medeiros, André Pardal,
António Ramalhinho, Filipe Abreu, Frederico Coutinho,
José Matos de Oliveira, José Redondo, Luís Lobão,
Nuno Pinheiro, Rita Loureiro, Valter Teixeira
e a voz de José Neto
Iluminação Rui Seabra
Cenografia e figurinos Maria Gonzaga
Fotografia Vitorino Coragem
Vídeo Sam Andrês
Produção Leonor Buescu
Apoios Fundação GDA, Fundação Calouste Gulbenkian, Primeiros Sintomas
Teatro do Bairro, Janeiro de 2020
"Luís Lobão revelou talento, intenção, naturalidade e capacidade de realização da densa e intensa teia de emoções que matizam a complexidade de Hamlet"
Jornal de Letras
Hamlet sabe mais sobre nós, do que nós alguma vez saberemos sobre ele. Ainda assim, é nosso destino tentar.
Levar a cena este clássico de Shakespeare revela-se um verdadeiro desafio, sobretudo se tiver em conta a sua reputação. Mark Twain disse que “os clássicos são livros que todos leram e ninguém leu”. Hamlet parece sofrer do mesmo destino: toda a gente sabe o que acontece e, ao mesmo tempo, ninguém sabe. É difícil chegar a este texto sem preconceitos porque, na sua maioria, está trancado na carapaça da sua própria fama. E quando alguma coisa se torna famosa, quase desaparece; e pior, posso pensar que a conheço quando, na realidade, não a conheço de todo. Por isso, antes mesmo da primeira leitura, pedi que esquecêssemos tudo o que sabíamos sobre Hamlet (ou o que julgávamos saber) e decidi começar do zero. Hamlet Unplugged — foi o melhor termo que consegui arranjar para descrever o que queria com este espectáculo: sem efeitos, sem agendas, sem afirmações políticas, apenas contar a história.
Hamlet nunca deixou de ser representado desde que foi escrito. Nunca. Esteve sempre na mira dos criadores, independentemente das modas, épocas, tendências ou costumes. Hamlet apresenta tantos desafios aos atores que se pensa que Shakespeare escreveu a peça simplesmente para se divertir, como se de um “recreio de atores” se tratasse.
Shakespeare não deixou nenhum texto teórico sobre Teatro, ou pelo menos não na forma como o lemos actualmente. A não ser, claro, pelos conselhos que dá aos atores. Em Sonho de Uma Noite de Verão ouvimos “nada de comer cebola nem alho, pois temos de ter um hálito doce” e “haja suor; haja perfeição”. Aqui, o conselho que Hamlet dá aos actores tem que ver com a interpretação do texto, “Dizei a fala, peço-vos, como eu a pronunciei, a bater na ponta da língua”. Conselho este que tomamos como princípio fundamental do nosso trabalho. Hamlet precisa que a representação da morte do pai seja suficientemente forte e verdadeira para expor a culpa do tio. Interessa-lhe que seja bem interpretada, que não seja um momento casual de entretenimento. Se os atores forem inaudíveis ou se balbuciarem as palavras, se a sua representação não for verdadeira, não vai funcionar. Ele pede restrição nos gestos e foco na palavra, pede contenção e emoção, pede energia e discrição. Pede humanidade. Portanto, o conselho de Hamlet é bastante direto. Consiste num conjunto de regras básicas para cada ator: clareza, projecção, articulação, presença, dizer o que está escrito e não exagerar.
Alguns atores consideram que qualquer educação formal em Shakespeare — e por formal entenda-se forma, verso, estrutura, rima — vai sufocar a sua resposta criativa. É um problema, em parte, porque se veicula a ideia de que não existe nenhum envolvimento emocional em formas clássicas de falar. Por isso, a voz projetada foi substituída por formas mais naturalistas de falar, como, aliás, vemos no cinema e na televisão. O que Shakespeare nos está a dizer — através de Hamlet — é que a estrutura é dramática e conta uma história. Por isso, o conhecimento da forma não deve ter apenas uma abordagem intelectual, mas também uma que consiga ser totalmente incorporada no corpo e na voz do ator. Só assim servirá o seu propósito.
Para o ator servir estes textos, precisa de estar preparado para soar maravilhosamente e, ao mesmo tempo, ser específico. Pergunto-me: em Portugal, quantas escolas de teatro ainda se ocupam em ensinar verso aos seus alunos? Conheço muitos jovens actores que, perante as minhas indicações, desenham no texto algumas marcações (paragens, suspensões, divisões de pensamento e argumento) mas quando olham para um texto em verso, onde estas divisões já estão feitas, não sabem o que hão-de fazer. E, pior de tudo, na ausência de uma compreensão orgânica do verso, seja porque nunca lhe foi ensinado ou porque ainda não tem experiência na profissão, recorre ao sussurro, ao grito, e ao empurrão, para veicular sentido. Isto é o triunfo do sentimentalismo: o ator quer passar a emoção e a ideia, mas não sabe como. Fazer espetáculos com textos de Shakespeare sem dirigir atores, deixa-nos com dispositivos cénicos muito interessantes, mas sem nada para dizer.
É por isso que o nosso trabalho começa a partir da palavra. Um entendimento aproximado do texto só pode resultar numa interpretação aproximada da peça. Os espetáculos de Hamlet dão frequentemente lugar a exercícios virtuosos de encenação, com claras afirmações de autoria, que elegem uma só ideia como motivo de toda a cena. Ainda que reconheça tentador afirmarmo-nos como autores de uma ideia através de Hamlet, interessa-me antes trabalhar a partir da palavra, tal como Hamlet diz aos actores.
Para entrar no mundo onde vivem as personagens de Shakespeare, é preciso recorrer à nossa imaginação, empatia e curiosidade. É uma viagem espiritual, emocional, histórica, social e filosófica, que exige coragem e nenhum julgamento moral. Este grau de exigência é o que propus a toda a equipa criativa, com o objectivo de criar um trabalho de compaixão que nos permita, enquanto artistas e seres humanos, ver e compreender o que está muito para além de nós mesmos, escrito nas palavras de muito tempo antes de nós. Quem compreender isto, assistindo ao espectáculo, ou mesmo como parte integrante dele, consegue ver o artista no seu primeiro dia de criação, no momento em que começa a perseguir uma ideia. Ou, no meu caso, um sonho.
Luís Moreira