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Noite de Reis
ou como lhe queiram chamar

Texto original Twelfth Night, or What You Will,

de William Shakespeare

Tradução António M. Feijó
Encenação Luís Moreira

Interpretação Alice Medeiros, Frederico Coutinho,

Joana Chandelier, José Mateus, José Redondo,

Leonardo Proganó, Paulo Duarte Ribeiro,

Rui Westermann, Sandra Pereira, Victor Yovani

Cenografia e figurinos Luna Rebelo

Movimento Joana Chandelier

Apoio à Produção José Pimentão
Apoio Largo Residências, Primeiros Sintomas, Teatro do Bairro, Copianço, Drivu

Teatro do Bairro, Janeiro de 2017

"Uma encenação peculiar revela-se um exercício astucioso

que devolve o teatro às suas bases."

Jornal i

Noite de Reis é um espectacular desastre. Violeta, depois de sobreviver a um naufrágio, disfarça-se de pagem para servir o Duque Orsino, que está apaixonado por Olívia e deseja casar com ela. Olívia, no entanto, apaixonada pelo mensageiro disfarçado, acaba por se confundir e casar com Sebastião, o entretanto aparecido irmão gémeo de Violeta. No subenredo, que serve de contraponto à linha principal do engano, existem outros enganos deliberados, como é o caso da artimanha que envolve Maria, Dom Telmo e o mordomo de serviço, Malvolio. O quinto acto é harmónico, mas não totalmente inclusivo: as personagens principais unem-se pelo casamento, enquanto que Malvolio abandona a cena, prometendo vingar-se de quem gozou com ele.

Há uma razão muito simples por ter escolhido esta comédia, pouco representada entre nós, como peça inaugural do ciclo shakespeariano. Noite de Reis é, assumidamente, uma das minhas peças favoritas. O título da peça refere-se ao Dia de Reis, que ainda hoje é comemorado no décimo segundo dia depois do Natal. A tradição era de que esta seria a última noite de comemorações antes das restrições que normalmente se seguiriam, onde a boémia não só era permitida como fazia parte do requisito obrigatório da festa. Por isso, o subtítulo da peça "Or What You Will" (aqui traduzido por Ou Como Lhe Queiram Chamar), implica, por outras palavras, que nesta peça é permitido o mesmo grau de deboche, mas só enquanto a comédia durar. E enquanto ela dura, de facto, a fragilidade das personagens é revelada: o quotidiano imutável marcado pela opressão é exposto como uma brincadeira que pode ser totalmente virada do avesso, sem consequências, no espaço de uma noite. É como quem diz: "Nesta noite, vale tudo". 

Shakespeare escreve sobre figuras de poder, e tanto nas Comédias como nas Tragédias, elas servem de imagem referencial ao universo em que o resto das personagens se move. Muita da nossa atenção para com os estatutos tem expressão na Duquesa Olívia, que começa a peça a fazer luto pela recente morte do seu irmão e apaixona-se terrivelmente pelo mensageiro nem vinte minutos depois. É óbvio que o luto é um código de comportamento que Shakespeare introduziu para contrastar com o resto do disparate que acontece, mais que não seja para dizer que ele é totalmente inapropriado. Esta arquitectura de poder e de estatuto serve também para desenhar o jogo entre o resto das personagens. É precisamente por vermos uma hierarquia tão bem definida, desde o início da peça, que achamos engraçado uma criada mascarar-se de dama, ou do mordomo achar-se cortejado pela Duquesa. Desejo contrasta com poder. A prevalência do desejo sobre a regra só tem valor cénico se essa mesma regra for entendida por todos (personagens e público) como lei, e se essa mesma lei tiver expressão nas formas de tratamento. Nas Tragédias isto tem especial valor, por exemplo, no amor proibido de Romeu e Julieta, cuja autoridade está nas famílias opostas desde o início da peça, como tem valor nas Comédias, no desejo de subverter a ordem, de brincar e de gozar com quem está acima de nós. É uma narrativa que não se esgota com Shakespeare, como aliás se manifestou pelo sucesso (e pela minha febre) de Downton Abbey, que serviu de inspiração para muito do jogo que encenei neste espetáculo. 

A rigidez da hierarquia não é suficiente para nos fazer rir, mas os episódios de engano e de disfarce que são arquitectados dentro dela são. A discrepância de estatutos é tanta em Noite de Reis que só a rede de contactos e de códigos de comportamento foi matéria de estudo de grande parte dos primeiros ensaios. Por isso, chegamos a uma variedade de tons e movimentos emocionais que não oscilam apenas entre a tristeza e a alegria. É um espectáculo que vive tanto no limite, com personagens que se entretêm tanto com a desgraça alheia, que o próprio público não sabe qual é a resposta apropriada: se chora ou se ri. É sobretudo um brilhantismo de Shakespeare, que reconhece que na vida do Homem, a alegria e a tristeza, muitas vezes, andam de mãos dadas.

 

Neste mundo criado por Shakespeare, cheio de inquisidores e ouvintes, as personagens usam a linguagem para se ligarem ao mundo, para sobreviver. Este é um mundo onde tudo é aparentemente novo e interessante, onde a paixão é atractiva e não absurda. Cabe às palavras iluminar e preencher a cena. Como, aliás, acontece com a música. As palavras que pedimos emprestadas à imaginação de Shakespeare dão-nos o cenário e os figurinos que precisamos. Noite de Reis é um divertimento levado a sério, que começa como acaba: com música e com amor. Este é o mundo que queremos celebrar. É o nosso elogio ao amor melodramático. 

Luís Moreira

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