Muito Barulho
Por Nada
Texto original Much Ado About Nothing,
de William Shakespeare
Tradução Fernando Villas-Boas
Encenação Luís Moreira
Apoio ao movimento Joana Chandelier
Interpretação Alice Medeiros, Ana Baptista,
Frederico Coutinho, João Vicente, José Redondo,
Luís Lobão, Luís Moreira, Paula Neves, Paulo Duarte Ribeiro, Sandra Pereira, Valter Teixeira
Iluminação Rui Seabra
Cenografia e Figurinos Maria Gonzaga
Vídeo Sam Andrês
Fotografia Vitorino Coragem
Produção Leonor Buescu
Teatro do Bairro, Janeiro de 2019
Teatro José Lúcio da Silva, Março de 2019
Teatro Diogo Bernardes, Janeiro de 2023
"Filho do Meio faz provas de saber ao que vem e ao que vai."
Jornal de Letras
É bastante tentador apreciar o valor de uma peça cujo título é Muito Barulho Por Nada. Em linguagem isabelina o “Nada” (Nothing) contém um duplo sentido: por um lado, era calão para o orgão sexual feminino, por outro, era sinónimo de notar ou comentar. Os dois sentidos da palavra “Nada” enquadram perfeitamente o tom da peça — a obsessão pela castidade feminina e a dança de comentários que ela provoca. Antes mesmo do barulho começar, Shakespeare já nos piscou o olho.
A missão de Muito Barulho, enquanto toda a comédia acontece, é a de nos acostumar a aceitar a maravilha e o teatro dos acontecimentos como uma verdade plausível. A mentira mais inacreditável torna-se matéria provável e aquilo que poderia ser dispensado, à partida, como absurda fantasia, torna-se numa verdade credível. No fundo, é o poder do boato. A dinâmica de Muito Barulho é, na sua forma elaborada, a mesma da mentira: circula com rapidez e tem a capacidade de construir (e destruir) as convenções da vida social. Para este espetáculo não me pareceu particularmente relevante explorar os efeitos e consequências da mentira, mas sim o potencial cómico dessa relação e da rapidez com que se estabelece esse tráfego.
Quanto mais de perto olharmos para este mundo, mais bizarro ele nos parece. O vilão Dom João cria o caos quando difama a promiscuidade de Hero, a filha de Leonato, governador de Messina. Dom Pedro, por sua vez, desenha um plano casamenteiro para Beatriz e Benedito, que repudiam o matrimónio, e a pacatez da casa de Leonato é transformada num baile mascarado de fingimentos e mentiras. Shakespeare compôs os episódios de engano com engenho: a bisbilhotice, a correspondência trocada, o baile, as máscaras, o teatro, são elementos que compõem uma escadaria de engano — tanto verbal como visual — e o resultado é uma comédia extraordinária que compreende que a impostura e a ilusão são requisitos obrigatórios do entretenimento de uma vida pacata. Foi precisamente por aqui que comecei a trabalhar em Muito Barulho, a encontrar o paralelo de Messina com a minha juventude em Alenquer, onde a pacatez de um dia particularmente estéril era preenchida pela adrenalina de um “diz que disse”.
Ao contrário do que o título da peça implica, o jogo de Muito Barulho é recheado de subtilezas, particularmente no jogo de palavras. É um duelo que não é só jogado nos diálogos entre as personagens, mas também nos solilóquios, que são sempre feitos em conluio com o público. Contudo, é preciso ter em consideração que, à luz dos acontecimentos recentes (sobretudo com um movimento tão expressivo como o "Me Too"), os jogos de palavras e sentidos que ecoam num ouvido medieval não são necessariamente os mesmos que ressoam num ouvido de um espectador moderno. Particularmente as piadas que dizem respeito às expectativas de papel de género. Muito Barulho é uma peça em que a opinião conjugal triunfa sob a identidade individual, e a sociedade patriarcal que habita em Messina não só valoriza a castidade feminina como promove a imaginação masculina. Talvez seja por isso que o misógino Benedito, recém-noivo de Beatriz, possa aconselhar o príncipe a buscar uma mulher, pois "a mulher é a melhor bengala dum homem, e nada melhor que a bengala feita de corno". Para mim, não há nada que arruine mais uma piada do que tentar explicá-la, particularmente com notas de rodapé. Portanto, decidi não cortar esta frase do espectáculo, mas marquei-lhe uma chapada depois dela.
Esta peça é tão conhecida pela guerra amorosa entre os dois pares de casais e das suas peripécias até ao altar, como é conhecida pela rigidez da estrutura social. É sem dúvida uma das comédias psicológica e sociologicamente mais realistas de Shakespeare, sobretudo no retrato das querelas e tréguas da vida em comunidade. Shakespeare representa um mundo que é governado (e envenenado!) por rivalidade masculina, onde as convenções de género e status enquadram o envolvimento emocional. Não se pode resumir esta peça a uma guerra de sexos - como muitas vezes se chega a fazer - porque é um mundo onde a qualidade das relações, com todos os seus efeitos, tem consequências maiores e mais trágicas do que apenas a da intriga.
O ciclo dedicado a Shakespeare, a que chamámos "Três Comédias, Três Tragédias", encontra o seu perfeito meio caminho nesta Comédia que, em diversos momentos, cria tensão no público, para imediatamente a seguir a libertar. O nosso objetivo continua o mesmo: contar uma boa história, que se perceba, com personagens bem construídas, para o público se divertir e sair satisfeito de uma sala de teatro. Muitos dizem-nos que foi a primeira vez que compreenderam Shakespeare, outros dizem-nos que foi uma grande surpresa descobrir que afinal Shakespeare é divertido. É nossa missão levar estes espectáculos a mais públicos e acabar, de uma vez por todas, com a ideia de que Shakespeare é destinado apenas a uma elite erudita suficientemente iluminada para o perceber. Essa é que é a grande mentira, e nós provamo-lo em palco.
Luís Moreira