Sonho de uma
Noite de Verão
Texto original A Midsummer Night's Dream,
de William Shakespeare
Tradução Fernando Villas-Boas
Encenação Luís Moreira
Assistência de encenação e movimento Joana Chandelier
Interpretação Alice Medeiros, Frederico Coutinho,
Gonçalo Lello, João Silva, Jorge Costa, José Matos de Oliveira,
Luís Barros, Luís Lobão, Luís Simões Rodrigo Cachucho,
Sandra Pereira, Sónia Lisboa, Teresa Tavares, Valter Teixeira
Iluminação Rui Seabra
Cenografia e figurinos Maria Gonzaga
Vídeo Sam Andrês
Fotografia Vitorino Coragem
Produção Leonor Buescu
Apoio Teatro do Bairro, ACT - Escola de actores, Lusiteca
Teatro do Bairro, Janeiro de 2018
"Uma linguagem fluída e repleta de wit, aquela palavra inglesa que junta numa só os termos sagacidade e humor."
Visão
Chamam-lhe peça festiva, ou comédia romântica (uma das primeiras, e com certeza a mais influente de todos os tempos), e nela quatro namorados fogem à lei para dentro de um bosque mágico, aonde um grupo de actores amadores também vai, para ensaiar uma peça. Titânia, rainha das fadas, e Oberon, rei das sombras, amantes eternos mas zangados, vão usar os namorados e os actores como pedras do seu xadrez de ciúme. Tudo acaba em bem, com três casamentos, um deles a cerimónia pomposa que era o motivo do ensaio da tal peça. E tudo acaba com a ideia mais ou menos romântica de que quem fica com quem não é o mais importante, porque a confusão, entre humanos, é inevitável.
A primeira ideia que tive para este espetáculo foi durante o verão de 2017, quando estava a ver uma exposição. Estava de pé numa enorme sala branca cujo chão estava completamente coberto de rebuçados de mentol. Lembro-me de ficar obcecado com a ideia de que se cobrisse o chão do teatro com o mesmo efeito, então eu teria o barulho das folhas do chão, para dar a ideia de floresta, e teria o céu estrelado, porque o papel metálico reflecte a luz. Desta forma, conseguiria os dois espaços da peça, o de Atenas e o da floresta. E foi com esta obsessão que voltei de férias e reuni o elenco para os primeiros ensaios.
Antes mesmo da primeira leitura expliquei que este espectáculo seria sobre ciúme. E, depois disso, elaborei a teia das relações ciumentas que se desenrolam na peça: Helena tem ciúme da beleza de Hérmia; Oberon tem ciúme da Titânia, e do amor que ela tem pelo rapaz que adoptou, Demétrio tem ciúme do amor correspondido de Lisando e Hérmia e, por fim, os obreiros têm ciúme do talento do Borboto, a estrela da companhia de teatro. O ciúme apresenta-se como força motora deste espectáculo. Neste sentido, e como ponto de partida, o espectáculo joga com a equação amor ciumento + amor violento = amor possessivo, ou amor obsessivo. Embora nos custe admitir, o ciúme, a inveja, a obsessão e a vingança são emoções humanas que todos experimentámos a dado momento na nossa vida. Shakespeare tem a capacidade de sintetizar e, ao mesmo tempo, de dar forma a estes materiais, mesmo quando os coloca em personagens sobrenaturais. E não o faz por acaso. Aliás, é precisamente por vermos Titânia e Oberon a discutir que reconhecemos a força do nosso lado humano. Não se trata de humanizar os super-heróis — como nos mostra o cinema moderno — nem de domesticar uma discussão que, de outra forma, seria extraordinária. Trata-se, antes, de demonstrar o poder da emoção humana, mesmo que estas personagens sejam dotadas de poder sobrenatural.
Para alguns, o Sonho é uma demonstração do optimismo de Shakespeare acerca da condição humana. Se não for para dizer, no fim de contas, que somos todos ridículos. Para mim, é a capacidade que o teatro tem de espelhar a condição humana, e de fazer grande espectáculo com ela. Não existe outro autor no mundo, capaz de, na esfera da linguagem, libertar energia que irradie sentido puro e imediato. E, a respeito do sentido, sou mais exigente. Passo a explicar. Em Shakespeare, as personagens falam de três maneiras distintas: em verso branco, em verso rimado e em prosa. Não é por acaso que os obreiros falam em prosa e os atenienses falam em verso. São divisões de estrato social, claro, mas também são partituras de ritmo: a rudeza da prosa, e a melodia do verso, por exemplo. Uma mudança de verso branco para rima pode significar uma mudança na personagem, um amadurecimento ou uma compreensão. No Sonho, os amantes falam em verso rimado antes de irem para a floresta e, depois da noite lá passada, acordam a falar verso branco. Esta mudança na forma do discurso marca tanto as personagens, como a situação: foram enfeitiçados.
A peça abre em verso branco, pelo casal Teseu e Hipólita. Este cortejar, que não é de um amor jovem, é interrompido por Egeu que entra com a filha Hérmia e com dois jovens, Demétrio e Lisandro. Toda esta importante discussão sobre a desobediência da filha é conduzida em verso branco. Isto é uma alegria para o ouvido do público, no sentido em que alivia a atmosfera e ao mesmo tempo introduz a urgência da cena. Quando o palco fica vazio, e os jovens amantes ficam sozinhos, é Hérmia que pega no verso branco de Lisandro e o transforma em rima, mudando o tom da sua situação, e fechando a cena como quem faz um laço num embrulho. A chegada de Helena rompe a intimidade, e faz com que Hérmia já não rime com Lisandro. Em vez disso, é Helena que escolhe rimar com Hérmia, restabelecendo os laços de amizade que as unem e, ao mesmo tempo, excluindo Lisandro da equação. É parecido com a experiência de assistirmos a dois amigos próximos a conversarem e sentirmo-nos excluídos da conversa pelo grau de cumplicidade na linguagem usada entre eles.
No quinto acto, no teatro dentro do teatro, existem também mudanças na forma, pois ainda que estes obreiros falem em prosa, eles representam em verso. Estão a repetir/imitar a fórmula dos amantes, ou então aprenderam que os eventos importantes da vida são contados em verso rimado. O problema é que não são muito bons a fazê-lo.
Luís Moreira